Há cinquenta anos, a Revolução dos Cravos levava militares e população às ruas para pôr fim a uma ditadura de mais de quatro décadas em Portugal
Foto: Arquivo/Centro de Documentação da Universidade de Coimbra
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 25 de abril de 2024
Era 24 de abril de 1974, às 22h55, quando a canção “E Depois do Adeus” foi transmitida do estúdio da Rádio Peninsular dos Emissores Associados de Lisboa. Foi assim anunciada a primeira senha secreta que daria início a um levante. Minutos depois, quando o relógio marcou meia-noite e vinte, tocou “Grândola, Vila Morena”, canção proibida no país. Era o segundo sinal, que marcava a saída dos quartéis do Movimento das Forças Armadas (MFA), confirmando a Revolução dos Cravos, respnsável por colocar fim à ditadura salazarista que perdurava há 48 anos - a mais longa na Europa durante o século 20.
O movimento culminou na rendição de Marcello Caetano, sucessor do ditador Antonio Salazar. Ele renunciou e veio cumprir exílio no Brasil. Uma revolução calculada, rápida (durou cerca de 18h) e sem violência, com quase nenhum derramamento de sangue, ela não só pôs fim ao sistema autoritário, mas também encerrou os 13 anos de conflitos coloniais na África. O movimento foi liderado por militares descontentes com a sangrenta guerra colonial portuguesa - posteriormente eles ficaram conhecidos como “Capitães de Abril”.
Logo nas primeiras horas do dia 25, oficiais saíram de seus quartéis e invadiram estações de rádio, bancos, aeroportos, secretarias e ministérios do governo com o objetivo de neutralizar as forças paramilitares. Aos poucos, a população também foi às ruas em um movimento de luta, mas também de simbolismo. No primeiro dia do levante, os portugueses colocaram flores (cravos) nos soldados dissidentes, em fuzis e canhões. Por isso o nome da revolução.
A queda
A professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Carla Risso tem uma ligação familiar com Portugal: seu avô, português, chegou ao Brasil em 1939, fugindo da crise econômica instaurada pela ditadura. Em 2010, ela viajou ao país, onde realizou um estudo sobre censura para seu doutorado. Para Risso, uma das coisas mais intrigantes sobre o 25 de Abril é que o anúncio da queda da repressão veio por meio de dois dos canais que a censura mais sufocava: a mídia e a arte. Ao comparar os processos de censura no Brasil e em Portugal, a professora observa que, embora os jornais brasileiros estivessem sujeitos à censura, o regime salazarista conseguia ser ainda mais rigoroso. Por isso, entre as primeiras ações dos revolucionários lusitanos estava a derrubada da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide) — a polícia ideológica encarregada da censura, além de perseguir, prender e interrogar qualquer opositor. “Todas as edições recebiam um carimbo informando que os jornais eram inspecionados. Isso tudo era resultado de um sistema enraizado há quase meio século”, analisou. No dia 26 de abril, no curso da Revolução dos Cravos, o jornal República estampava na capa: “Este jornal não foi visado pela censura”.
Foto: Arquivo
Durante seu período de estudo em Portugal, a professora conduziu diversas entrevistas, entre elas, uma com o jornalista português César Príncipe. No dia da Revolução, ele se dirigia para entregar a versão original do jornal à equipe da censura, quando encontrou a sala vazia. O regime havia sido derrubado. Depois de 48 anos de ditadura, ele ficou sem reação, sem saber se o jornal poderia ou não ser publicado. “Porque quando é introjetada uma repressão por 48 anos, muitas pessoas não tinham vivido outro regime além do salazarismo, como era o caso de César Príncipe”, explicou ao professora ao Metro1.
50 anos de democracia
A Revolução dos Cravos representa uma grande lição que Portugal deu ao mundo: no Brasil, a abertura foi gradual e não houve punições aos envolvidos, tampouco um dia específico que marcou o fim da ditadura: “A censura terminou com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Aqui no Brasil, não houve esse estranhamento imediato, pois as transformações foram progressivas, enquanto em Portugal foi uma transição abrupta de um dia para o outro”, afirmou a professora.
Morando em Portugal, o ator Bemvindo Sequeira aponta essa e outras diferenças entre a forma que os brasileiros e os portugueses lidam com os seus passados. Em vez de “Ditadura nunca mais”, em terras lusitanas é proclamado “25 de abril sempre”.As celebrações são marcadas por palestras, lançamentos de livros, manifestações públicas, debates e ações. É um dia que significa orgulho para os portugueses.
“No Brasil, o antigo regime não foi totalmente superado; na verdade, foi assimilado. Já em Portugal, não se fala mais em salazarismo, mas sim em democracia. Aqui, há memoriais, os jornais relembram os eventos repressivos, mas ficou no passado [...] No Brasil, não há uma data para celebrar a retomada democrática. Seriam as “Diretas já”? Mas elas não ocorreram. Seria o julgamento dos crimes? Mas isso não aconteceu. O que resta é ser contra o 31 de março. Isso marca o início da ditadura, não o fim”, indagou.
Dos cravos ao Chega
No ano das cinco décadas da Revolução dos Cravos, o partido Chega, de extrema-direita, avança no poder. A sigla chegou a romper a alternância de poder entre direita e esquerda moderadas que vigorava no país desde o fim da ditadura e, de 12 cadeiras no Parlamento em 2022, pulou para 48 na eleição deste ano. A ascensão meteórica tem explicações na figura do jurista André Ventura, líder do partido, que ganhou popularidade discutindo segurança pública na TV.
Apelidado de “Bolsoluso”ou “Bolsonaro português” por seu alinhamento ideológico, Ventura já fez ataques ao presidente Lula e endossou as falas do empresário Elon Musk, dono do X, com uma série de críticas ao ministro Alexandre de Moraes (STF). Em março deste ano, após o presidente brasileiro anunciar que visitaria Portugal, Ventura disse que, se eleito primeiro-ministro, proibiria sua entrada no país europeu.
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